TEXTOS DO AUTOR

VOCÊ GOSTA DE APANHAR?

Há quem seja metralhado em fogo amigo, há quem apanhe dos inimigos e até mesmo dos pares, de forma ímpar. São situações por que passam alguns funcionários públicos, que querem ser paladinos, remando contra a corrente.

Trabalhar no serviço público hoje é o objetivo de muitas pessoas que veem essa modalidade de emprego como sinônimo de segurança, estabilidade, possibilidade de crescimento. Essa questão da estabilidade, no entanto, não implica dizer que o servidor é inalcançável pela justiça, nem que possa indefinidamente cometer abusos, furtar-se às obrigações regimentais, deixar de proceder nos limites da ética.

PalmadasGrande empecilho ao bom andamento dos trabalhos no serviço público têm sido os cargos comissionados, regra geral ocupados por servidores indicados por alguém. Não se quer dizer que às vezes alguns não sejam indicados pelo seu desempenho técnico e pelo seu histórico de serviços prestados. Situação difícil e delicada é aquela em que o servidor extrapola na sua postura os limites do razoável e permanece acobertado pelos seus padrinhos. Há casos também de servidores que não têm vínculo com o serviço público, pertencem a empresas terceirizadas, um artifício hoje comum para se viabilizar apadrinhamentos e quitar dívidas de campanha. Tais servidores, quando se arvoram a fazer o que querem, não há quem os demova dos seus intentos, mesmo que lesem o erário. Ninguém pede para demiti-los, apenas para transferi-los. Mesmo que deem desfalque na conta telefônica, por exemplo — quem atesta imagina que o cofre do Estado é seu. São tão poderosos às vezes que conseguem afastar quem se insurge contra eles. Ao falar disso, a gente geralmente apanha.

Imaginem quando o envolvido em falta de assiduidade, de lisura, de honestidade e otras cositas  é do quadro permanente. Ninguém se prontifica a interromper a saga dos incompetentes ou picaretas. São transferidos ad aeternum. Só sua fama vai valer como punição. Mas eles não se incomodam. Passa-se a não envolvê-los em grandes missões. E eles passam a vida com um pé na marginalidade, no ostracismo. Há até quem prefira que fiquem em casa, para não contaminar aqueles que se acostumaram a trabalhar direito. Se bem relacionados, esses fora da lei efetivos, porém, transitam pelo mundo do serviço público como se fossem imunes a tudo e a todos. Jogam com a sorte. Quando têm cacife político, são imortais, invulneráveis. Todo mundo sabe que um processo de demissão por justa causa é demorado, dá um trabalho enorme. 

Há momentos de generalizada incompreensão quanto a picaretas. Já houve caso de se afirmar "eu sei muito bem quem são os picaretas aqui...". O fato de dizer isso foi motivo para muitos se sentirem ofendidos. Até quem não era! Como se pegassem a fila dos picaretas e assumissem a condição. Dá pra entender? Eu jamais entendi. Corporativismo impensado? seria esse o nome? Ao tocar nisso, a gente geralmente apanha.

Certa feita botei delicadamente certa funcionária minha na parede. E ela simplesmente me disse que não pretendia fazer carreira no serviço público, mas se aposentar nele... No que dizia respeito à sua motivação para o trabalho disse ainda que era proporcional ao salário. Bem, proporcionalmente, o salário dela era excelente, já que usava demasiadamente seu tempo no serviço público para cuidar de interesses pessoais, que coincidiam com os interesses profissionais de sua atividade paralela. Abrir sindicância com vistas a demissão? Por que eu? Por que ser o paladino? remando contra a corrente? Não é o que todos pensam? Deixa pra lá, todos dizem.  Ao mencionar isso, a gente geralmente apanha dos protagonistas.

Deixando os acobertamentos de lado, quero ressaltar que há uma série de inconvenientes em ser servidor público. Vou me fixar em um apenas — o ato de apanhar dentro e fora da instituição. Como se fosse mulher de malandro.

É do conhecimento de todos que muitas irregularidades não são alcançadas pela fiscalização, seja de obras, seja de atividades econômicas. A primeira alegação de um infrator é apontar casos que não sofreram fiscalização, ou em que a irregularidade se consolidou. E perguntam "por que eu fiscalizado? bode expiatório?".  É o apelo ao princípio da isonomia. No caso de obras, entre uma edificação irregular consolidada e outra em andamento, é notório, a fiscalização sempre dirige seu foco para a que está em curso.  Partindo para uma contestação contundente,  no caso hipotético de alguém se apropriar do celular que não é seu e por tal razão ser preso... adianta usar o argumento a seu favor de que existem milhares de gatunos que roubam celulares e estão impunes? "Por que eu?", diria o autuado. Ora, não faz sentido essa linha de contestação. Ninguém pode cometer ilícitos simplesmente porque muitos se escondem na impunidade. Tiveram sorte de se safar.

O fato de se trabalhar numa Agência de Fiscalização gera sentimentos contraditórios e interessantes. Ou nada interessantes, para melhor dizer. A gente apanha de nossos pares quando insistimos na legalidade, apontando incoerências, criticando procedimentos... E a gente apanha da sociedade, que quer ação da fiscalização, desde que não seja consigo própria.  Somos vilões porque não agimos, somos vilões porque agimos, somos vilões porque investimos contra atitudes corporativistas, somos vilões porque denunciamos, somos vilões porque exercer cidadania e ética, muitos acham, tem sua vez e sua hora. Que nunca é bem aquela...  Muitas vezes o que se quer é que a gente se cale. Ou até mesmo — pasmem! — que denuncie por eles, desacostumados a lutar por seus direitos. Bem, de todo jeito, somos sacos de pancada.

Nesse caso de timidez para denunciar e exercer cidadania, houve um caso que me marcou muito. Em época que eu era gerente de obras da Administração Regional do Lago Norte, em Brasília, a comunidade foi "agraciada" com uma obra de calçadas mal conduzida tecnicamente, o  que ensejou vários desdobramentos, chegando até o Ministério Público. Se chegou foi totalmente por iniciativa minha, que tanto me incomodava (e me incomodo) com desmandos com o dinheiro público. Produzi enorme rol de documentos que indicaram investigação. Um casal de amigos, muito amigos, ele arquiteto, ela engenheira, me criticavam diuturnamente, completamente alheios e impermeáveis para perceber que eu não era o responsável pela famigerada obra, mas sim o incomodado. Mas um incomodado solitário, convenhamos. O casal nunca conseguiu sequer formalizar uma crítica, um arrazoado técnico — engenheiros e arquitetos que eram — que se transformasse em denúncia, que por sua vez se tornasse um elemento a mais para engrossar as fileiras de minha luta inglória... Passados os constrangimentos, eles nunca quiseram tocar no assunto.

Percebem? A gente apanha de um lado. E apanha de outro. Quando passamos a gostar, claro, viramos masoquistas. Mas em sã consciência, ninguém gosta de apanhar.

Aristides Coelho Neto, 20.3.2012

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Nota — sobre dever cidadão e ainda sobre o caso das calçadas do Lago Norte e outros incômodos, você pode conhecer mais aqui nestes cinco textos meus:

1) Calçadas do Lago Norte e cidadania: noções básicas

2) Gracinhas com dinheiro público

3) Manual de sobrevivência do picareta

4) Athos Pertinentes, um sonhador no Reino da Fenínsula, e

5) Zé do Muro e as palavras ao vento

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