TEXTOS DO AUTOR

Voos de 2012: o que falam os bem-te-vis e outras aves que bem veem

O que os passarinhos dizem dos planos de cada um nesta virada para 2012.

Era 31 de dezembro de 2011, o ano terminava. Eu pensava em frases expressivas que melhor dissessem do que se pretendia de 2012. Ou do que se devia pretender... de nós, claro, no ano vindouro. Porque animados somos nós. Ano é imaterial, inanimado.

Ali no parque Taquaral, em Campinas, eu fazia uma horinha antes do voo do começo da tarde. Havia um sanhaço em primeiro plano. Por falar em voo, o voo preciso de um bem-te-vi era ato imperdível de se apreciar. Ao fundo, uma família de marrecos.

— O sanhaço lhe diz alguma coisa?

Nem havia percebido que alguém se sentara ao meu lado, pela direita.

— Como assim?

O homem sorriu sem me olhar, certo de que eu lhe daria atenção. Jornal sobre as pernas, agora fixava o olhar numa ilustração. Um pássaro rodeado de notas musicais.

— Esse escritor diz que os pássaros falam. E pelo jeito são filósofos. É uma mensagem de ano novo. Muito bem escrita. Filosofia simples, comovente.  Leia.

 
Fixei os olhos no texto "E a ave avisou", de Cecílio Elias, Correio Popular,   e passei a ler em voz alta, no ponto em que o homem indicou com o dedo. Engraçado que ele não indicou com o indicador, mas com o polegar, que tocou o texto e em seguida virou para cima, em sinal de aprovação.
Quando terminei, alguém do meu lado esquerdo fez um comentário. Que susto! Eu também não percebera o velhote de barbas brancas e calça verde. Aquele verde dos elfos em filmes de Papai Noel.

bem-te-vi— Bonita mensagem. Os passarinhos contam coisas mesmo. Aliás, são muitos os seres e objetos que falam. Travesseiros, botões.  Quem de nós não se confessou com o travesseiro? Quem de nós não falou com seus botões? Travesseiros e botões são sábios também, pois mais ouvem do que falam. Paredes também falam de vez em quando. Na maioria das vezes, mais escutam do que falam. Guardam grandes segredos.

Levo outro susto quando alguém fala por cima de meus ombros. Não me virei para olhar, pois o texto do jornal parecia assumir um caráter mágico e agregador. Tanto que as pessoas à minha volta se tornavam absolutamente confiáveis.

— Papagaio fala, calopsita, corvo — riu-se o de trás. — Só que uma mensagem de ano novo pode também ser mais científica.

— De que forma? — perguntei.

— Algo matemático... Assim, por exemplo. Se conseguíssemos que as vibrações fraternas do Natal norteassem os 360 dias vindouros, quando chegássemos no dia 23 de dezembro, teríamos 5 dias para nos abastecer para os próximos 360. Isso aconteceria de 23 a 27 de dezembro, quando as pessoas são muito melhores. A ordem seria só fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. É um princípio altruísta, com base, por incrível que pareça, no egoísmo próprio de cada um... Cobriríamos os 365 dias. Em anos bissextos, pequena adaptação.

— De 23 a 27 são quatro, e não cinco! — comentou um anãozinho com gel no cabelo, que apareceu não sei de onde.

A voz da retaguarda se fez ouvir incontinente:

— De 23 a 27, inclusive, são cinco, sim!.

O velho de barbas brancas balançou a cabeça para um lado, para o outro. Com a boca muxoxa indicava que podia ser ou não ser.

— Prefiro usar a receita do autor: ouvir com o coração. É coisa que quase ninguém mais faz. Mudanças, é o que a gente precisa. Entre nós é comum só se mudar a casca. Nunca o miolo. Quem só muda a casca, só vê, não enxerga.

A voz de trás ecoou de novo, enquanto os marrecos do Taquaral se afastavam.

— Botões, travesseiros, bem-te-vis, paredes... Há coração que fala pelos cotovelos...

— Bem, na maioria das vezes tudo fala, mas falta a ressonância no mais íntimo do ser... — disse o homem que segurava o jornal, depois de um suspiro profundo.

Nesse momento, sem grandes conclusões, me levantei, pelo adiantado da hora. Quem estava atrás de mim já não estava mais. Falei tchau e segui pensando nas expectativas para o ano.

Na banca de revistas do aeroporto, folheei o Correio Popular à procura do texto que lera. Não achei.

— Procure neste de ontem — disse o homem, me entregando um exemplar. 

No caderno C, lá estava. Li então com mais calma o texto de Cecílio Elias Neto.  E me impregnei da delicadeza com que o autor revestiu o assunto. Um apelo sutil, na busca do homem novo que teima em se esconder nos recônditos da alma. Mas um passarinho parecia me contar que aquele velho da esquerda tinha sido imaginação. O homem de trás? Desse eu só ouvira a voz, que estranho. Até um anão, mas que coisa! O homem que estava com o texto? Caramba! Era a cara do homem da banca, sem tirar nem pôr...

— Não precisa pagar, moço. É jornal de ontem. E ontem já era. Só hoje e amanhã é o que importa, se a gente fizer por onde. Feliz 2012!

E eu me despedi, já em dúvida se eu estivera mesmo no parque Taquaral ou se fora tudo um sonho de fim de ano.

Aristides Coelho Neto, 2.1.2012
 

...e a ave avisou

Cecílio Elias Neto, escritor e jornalista, celiato@terra.com.br

A filha primogênita e o marido — ela, socióloga; ele, geógrafo e geólogo — são, como os chamo, andarilhos da vida. Saem, em pesquisa, mundo afora. Nunca sei onde estão, por mais me avisem com antecedência. Ora num lugarejo da China ou numa metrópole do Japão, ora entre budistas da Índia ou junto a povos primitivos da África.

e a ave avisouNuma de nossas conversas, disseram-me da experiência humana vivida no Mali. Banhavam-se em rios ou com canecas da água que escorria de canaletas de bambu. E, nos finais de semana, participando do ritual dos malineses, iam até as montanhas onde famílias deixavam os seus anciãos. Eles eram instalados nos altos das montanhas, quanto mais perto do céu melhor, para ouvir o que as aves contavam. Eram os áugures das famílias. Comida, água, cobertas eram-lhes garantidas para eles não passarem qualquer necessidade. A missão deles, dos velhos, era apenas ouvir avisos das aves. Pois aves avisam.

Dia desses, a filha percorreu os olhos pelo jardim, sentiu o silêncio modulado por canto de pássaros, compreendeu meu recolhimento, falou: “Pai, você ficou o pajé da tribo. O que os passarinhos lhe contam, que avisos lhe dão?” Descobri, então, que, tentando viver em estado mais contemplativo, ouço, sim, vozes da natureza. São brisas murmurando, aves pipilando, sons harmônicos dessa sinfonia singular formada pelo que me cerca. E a linguagem é diferente, como se ouvida pelo coração. E não é que o coração tem — ele, sim — os ouvidos de ouvir?

Na verdade, sabemos do inexplicável e nos esquecemos disso. Ora, se velhos áugures ouvem o que as aves avisam, a nossa gente também o ouvia. Pois, quando se tratava de cochichos, de segredos, aquele recado indefinido que pessoas contavam, as coisas eram explicadas por uma frase singular e significativa: “Passarinho me contou”. Não é preciso, pois, ser idoso e morar em alto de montanhas para ver e ouvir. Basta ter coração de sentir.

Entre beija-flores, bem-te-vis, sabiás, sanhaços, resolvi ouvir o que o bem-te-vi teria a me dizer, o que iria a ave avisar. E o passarinho me contou, desconsolado: “Somente vocês ficam marcando a passagem do ano. Um dia é sequência do outro. Esse novo ano de vocês será igual ou pior ao que está acabando”. Quis argumentar, ele me falou: “Vocês não veem e não aprendem. Olhe bem: você me viu, mas não bem me viu. Eu vi e bem-te-vi. Quando vocês aprenderem a bem ver o mundo, o mundo será mais bem visto por vocês. Não foi o nosso Criador que sugeriu vocês olhassem as avezinhas dos céus, os lírios dos campos? Pois aí está: os lírios não tecem e não fiam mas nem Salomão, com toda sua glória, se vestiu como sequer um deles. E eu, que não planto e não colho, sou alimentado pela natureza. Bem me veja, amigo, bem me veja” — falou o bem-te-vi.

Quis ouvir o sabiá, todo vaidoso de sua boniteza. Ele ouvira a preleção do bem-te-vi. Ao bicar o chão, colhendo algo para se alimentar, falou: “Vai piorar, vai piorar... Tem que mudar por dentro. Toda a gastança desse fim de ano de vocês irá exigir mais trabalho, mais correria, mais produção. As crianças ficarão mais solitárias, longe dos pais; maridos e mulheres irão se desentender por cansaço, sem ânimo e forças para amar; a violência aumentará. E não adianta vocês reclamarem da corrupção dos políticos como se apenas eles fossem corruptos. Corrompeu-se tudo, o povo foi minado pela corrupção e gostou. Você percebeu que passarinhos ficamos pouco tempo no chão e nos soltamos para voar pelos espaços? Vocês precisam deixar de rastejar como as serpentes e permitir que suas almas voem em busca do belo e do bom. Almas têm asas. Ninguém mais percebe isso”.

Mal vi o beija-flor aproximar-se, entristecido da humilhação. Picando uma flor aqui, picando outra lá, ele falou baixinho: “O problema está na esperança. Vocês perderam o sentido dela. Pensam que esperança é ficar esperando, querendo que as coisas aconteçam, acreditando passivamente que o melhor irá acontecer. Essa é uma espera inútil. É preciso ir em busca daquilo pelo que se espera, lutar, querer”.

Perguntei, numa iluminação: “Como Sísifo?" O colibri não sabia de quem se tratava. Expliquei ser o homem tenaz que carregava a imensa pedra morro acima e, chegando ao alto, a pedra caia. Ele tentava novamente, tudo se repetia, um carregar pedras sem fim, um subir e descer intermináveis. O beija-flor não se interessou. “Mas não é o que vocês estão fazendo ano após ano, repetindo as mesmas coisas? Isso não é esperança, é burrice.” E me desejou um feliz e diferente ano novo, avisando: “Tenha esperança no belo que encanta, vá em busca dele e você ficará encantado”.

Entendi.

Correio Popular, Campinas, 30 dez. 2011 – caderno C, p. 2

 

Comentários (3)

Voltar