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SUFOCO FLUVIAL

Crisalvo segue de barco para o casamento em Itacoatiara. Antes tivesse comido a coxinha.

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Até para um manauara de seus quarenta anos como ele, trafegar de barco pelos rios da Amazônia é experiência boa, sempre com sabor de nova. Passar pelo encontro das águas do Solimões com o Negro, para formar o Amazonas, é sempre prazeroso, um quê de mistério. Navegar num rio que parece mar é espetáculo inesquecível. Compensa o desconforto da viagem longa, mesmo em barco velho, parte destinada às redes e aos bancos dos passageiros. Refeitório e a sala de comando, na maioria das vezes sem separação definida. Pequeno bar não poderia faltar.

Convidado para padrinho de casamento naquele julho de 1972, convite irrecusável, Crisalvo opta por ir de barco de Manaus a Itacoatiara. O preço da passagem inclui café da manhã e almoço. São quase nove horas de viagem, isso porque é viagem a jusante do rio Amazonas — subindo o rio leva mais tempo. A maioria dos parentes é de Urucurituba e virão até Itacoatiara para a celebração. Ainda bem, caso contrário ficaria um pouco mais difícil para Crisalvo. Barco saindo às 6h da manhã, tempo contado, mas suficiente para pegar a cerimônia à noite desse mesmo dia. Nosso personagem dormirá na casa do amigo Antônio, pai da noiva, voltará no dia seguinte de ônibus, combinado com seu patrão no escritório. A estrada, inaugurada há sete anos, oferece boa alternativa para cobrir os 265 km de volta a Manaus. Programação fechada.

Para facilitar as coisas, uma pasta só com uma cueca, escova de dentes e uma toalha para eventualidades. Por via das dúvidas, Crisalvo já vai engravatado, com seu terno azul, camisa bege — pra sujar menos — e as abotoaduras de gala, que faz tempo não usa.

Crisalvo embarca. O barco antigo, recém-batizado de "Ame-ou-deixe", vai parando nos povoados ribeirinhos mais significativos, onde desce e sobe gente apressada com artefatos domésticos, até com fogão. E sempre alguns ambulantes aproveitam a parada rápida da embarcação, que não pode atrasar. Número reduzido de banheiros — dois, pouco pra tanta gente —, não é que até os ambulantes que chegam os usam?

Crisalvo sabe que vai almoçar ao meio-dia. Não se entusiasma com as guloseimas dos ambulantes — coxinha, pamonha, pupunha, cocada, banana frita, pratos feitos de pirarucu ou tambaqui com arroz. E ainda as frutas típicas da floresta, doces caseiros, açaí, bacuri. Nosso elegante padrinho de casamento evita frituras como coxinha, e não confia no preparo: pode fazer mal. O almoço tem peixe ensopado. Peixe do mar, que vem de longe, pelas barcaças de refrigeração deficiente. O peixe do mar, então, subiu o rio. E agora desce, transformado em peixada, servido com arroz, farofa, pirão e salada de tomate. O refeitório está lotado. A água de beber, dizem, é filtrada, mas todos sabem que ela vem diretamente do rio. Os dejetos também vão direto para o rio.

Pouco mais de uma hora depois do almoço, Crisalvo sente ligeiro mal-estar. A seguir, necessidade urgente de ir ao banheiro. Será o tal do peixe de água salgada? Pode ser... No caminho do banheiro, avista uma aglomeração. Por entre as pessoas que parecem estar criando uma barreira visual, vislumbra-se a figura de um garoto de seus catorze anos sentado na proa com a bunda voltada para o rio, sendo segurado por dois adultos para não cair na água. Crisalvo não entende. Mas não tem tempo para tentar entender. Precisa ir ao banheiro!


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A surpresa ao chegar ao sanitário— são doze pessoas na fila. A maioria sem conter a urgência. Todas com expressão de angústia, massageando o abdome. Uma mulher se adianta e começa a bater na porta, no que é muito criticada em meio aos gemidos. Outra senhora, porém, conformada desabafa: "Seja o que Deus quiser..." Nesse momento fica claro que o almoço não compensara. Sabe agora, exatamente, o que o garoto fazia na proa.

Quando só há três pessoas na sua frente, Crisalvo mela a cueca. Mesmo assim, ao chegar sua vez de entrar no banheiro, entra com certo alívio. Alívio que dura pouco. O banheiro está um caco de sujo. Privada turca lambuzada, não há papel higiênico. Batem na porta, enquanto Crisalvo usa a parte limpa da cueca suja para as funções de papel higiênico. Tem de preservar a cueca da pasta. A estratégia não é suficiente. Nova crise de dor de barriga. Pessoas batendo. Tem de ser rápido. E vai-se o lenço. E vai-se a gravata. Quando sai, segue direto para o comandante, pede uma tesoura emprestada. Guarda as abotoaduras, corta os punhos da camisa de manga comprida que foram comprometidos irremediavelmente. O odor reinante? Ora, em tempo de crise a solidariedade se manifesta!

Deve haver histórias mais tristes que a de Crisalvo dentre os passageiros, mas não tive notícias. Nem o casamento eu soube como foi. Só sei que, no barco, roubaram a cueca e a toalha da pasta de Crisalvo (penso que não por mal, mas por pura necessidade). Como ele se virou? Bem, há sempre parente que empresta coisas. Mas convenhamos, antes Crisalvo tivesse comido coxinha.

Aristides Coelho Neto, 17 abr. 2019

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