TEXTOS DO AUTOR

O FUTURO REI

Índio Véio e Preto Véio tinham lá suas expectativas. Eles eram povo, e o futuro rei parecia sinalizar democracia.

Naquela terça-feira, a chamada já estava na letra V quanto ao sobrenome. No finzinho então. O futuro rei havia aberto essa oportunidade para ouvir as minorias. Era uma experiência democrática singular no reinado. A audiência na sala fechada durava pouco, mas pelo menos, em alguns minutos preciosos, podiam-se declinar os problemas, os anseios, as esperanças, as dúvidas. 

Na sala de espera, eram cinco os que tinham sobrenome com a letra V. O de cocar chamava mais atenção, pela diversidade multicolorida das penas escolhidas para o ornamento, estas cuidadosamente arranjadas por tamanho. A pele queimada do homem de ar sóbrio ostentava os sulcos da experiência. Era um intrigante desenho elaborado pela natureza. Os olhos amendoados constantemente vagueavam por sobre a janela, como à procura de respostas num horizonte longínquo. Com o futuro rei, queria falar do seu povo, do respeito às diferenças, da necessidade de trabalho e estudo para a comunidade. Sem falar de ocas para todos, como direito constitucional. 

O negro de roupa branca devia ter idade avançada. Não havia nenhum fio preto na cabeleira rala, encaracolada e uniforme. A indumentária alva e o cabelo peculiar ofereciam um contraste que chamava a atenção. Havia harmonia no conjunto. Ostentava um cachimbo sem luxo com cara de artesanal. Parecia aceso, mas logo se percebia ser um adereço cênico a fazer parte do seu cotidiano e dos ademanes necessários ao seu meritório papel. Apagado ou fumegante, o utensílio compunha a imagem de um sujeito distinto, sabedor das coisas, por demais conhecido do imaginário popular. Via-se leve embaçamento do cristalino quando ele por vezes abria mais os olhos pequenos. Ensaiava em pensamento o que dizer ao futuro rei sobre a diversidade, a cultura, a religião... mas não se esquecia da segurança, da justiça e dos anseios para uma vida de mais conforto. Tudo, claro, em meio à imprescindível igualdade de oportunidades. 

Outros dois, que se sentaram perto da porta de entrada, eram bem diferentes dos primeiros. A vestimenta e os modos sobressaíam, cada qual a seu jeito. Quem olhasse fixaria alternadamente o olhar na bermuda de um, no penteado arrepiado do outro, no boné com aba voltada para trás de um, na alpercata do outro, no chinelo de dedo, na agitação no whatsapp, na tatuagem, na camiseta com inscrições em inglês e outros tantos traços.  

O quinto homem exibia um terno alinhado, embora surrado. Cabelo bem desenhado a gel. Certamente o perfume no ar era dele. Tinha uma pasta preta, de onde sacava um caderno de anotações sempre que se lembrava de algo. Unhas pintadas. 

Difícil mergulhar no mundo de cada um. Há pessoas que, pela sua inquietude e efervescência, ou mesmo dissimulação, oferecem um vácuo investigativo. Outros parecem indevassáveis. Outros mais sequer emitem sinalizações de energia interna. Nem sei se era o caso. Mas antes que eu tivesse tempo de perscrutar aqui o íntimo dos últimos três, para melhor pontuar os motivos de estarem ali, a secretária cor de sapoti entrou na sala. Pode ser que eu tenha perdido tempo demais descrevendo os dois primeiros... 

— Quem tem sobrenome "Véio" na sala? — perguntou a moça, com ar circunspecto.

Os cinco levantaram a mão. Coincidentemente, embora não tivessem parentesco algum, estavam ali Índio Véio, Preto Véio, Bode Véio, Mano Véio e Macaco Véio. Peço a complacência do leitor. Sei que estatisticamente isso é muito raro, mas aconteceu!

Foram chamados, a seu tempo, dois a dois, ficando Macaco Véio por último, sozinho, em audiência individual. Em primeiro lugar, o que ocorreu com os cinco entre as quatro paredes, naquela terça, de segundas ou veladas intenções, não tive acesso. 

Democracia (e o rei acenava com ideais democráticos) abre espaço para que eleitores — chamemo-los simplesmente cidadãos — de vez em quando façam a comparação das ideias iniciais do governante com a concretização dos planos prometidos para o bem-estar geral. Essa eventual conferência é necessária, embora estejamos falando aqui de súditos... Foi assim que Índio Véio e Preto Véio voltaram um ano depois com esse propósito. Já Bode Véio e Mano Véio, que eu saiba, não vieram. Pode ser que por esquecimento. Ou porque não sentiram essa necessidade. Ou por desconhecimento, talvez.

Para surpresa de Índio Véio e Preto Véio, eles foram recebidos não mais pela secretária alta e morena, mas sim por Macaco Véio, que agora era assessor do rei. E Macaco Véio simplesmente informou aos dois respeitáveis cidadãos que eles não poderiam falar com o rei, pois ele estava em reunião fora do reino. E eles voltaram a pé pra casa, certos da incerteza de um dia poder falar com o rei cara a cara.

Aristides Coelho Neto, 18 out. 2018

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