TEXTOS DO AUTOR

GENTE QUE MARCA

Uma conversa com um amigo dileto que viajou de volta para o Mundo Espiritual. Na sua mala, os bens que impregnaram positivamente todos que estavam ao seu redor.

Querido José Carlos,

Estive num velório  recentemente, aqui no Campo da Esperança, pai de uma amiga. O padre falou até bem. Falou de descansar em paz, das muitas moradas, com o sentido de o Pai ter sempre um lugarzinho para nós, na sua generosidade infinita. Falou em céu, ressurreição e estar nos braços do Pai. De tudo que foi dito, eu desejei apenas, com fervor, que a família espiritual do falecido o recebesse do lado de lá. E que junto com os prepostos do Criador o auxiliassem na transição desta para a verdadeira vida, ajudando-o carinhosamente na nova caminhada.

Voltei para casa pensando em você, José Carlos, que marcou indelevelmente nossas vidas, e que viajou para a pátria espiritual agora em maio. Andei falando por telefone com Léa e com seus filhos. Foi um choque para todos abdicar do seu convívio. Embora estivéssemos a 1.000 km de distância, a sua presença física e/ou virtual era marcante, fazia bem. Relembramos ao telefone, com inominável saudade de você, o seu temperamento apaziguador, sempre alegre e otimista. E sua altivez em relação aos problemas de saúde dos últimos tempos.  

E volto aqui à fala do padre. As muitas moradas para nós, você sabe, dizem respeito à pluralidade das existências, dos mundos de vários graus de evolução. Não acredito que você esteja pronto para mundos muito superiores a este aqui. E nem que vá para aquele céu  de repouso eterno que todo mundo aspira equivocadamente. Nessa dicotomia simplista de Céu e Inferno, claro que você iria para o Céu.  Não vai, você sabe. Se estar nos braços do Pai é ser acolhido pelos Seus assessores, isso vai! Certeza!

Imagino a festa que foi aí, Zé.  Vó Virgínia, seu pais, João e Rina, o Celso, todos tomados de contentamento pela sua jornada vitoriosa. Difícil é chegar aí, meu amigo, contabilizando equívocos, desvios, fracassos, ou com os débitos aumentados. Me lembrei daquela comparação da morte com a viagem de navio. O passageiro parte, deixando seus afetos. Dentre os acenos, muitos choram, alguns se desesperam. O navio vai ficando pequeno aos nossos olhos e, já um pequeno ponto, some no horizonte. Na outra margem, o ponto vai crescendo, a imagem do navio aumentando, até aportar. Nessa margem, os parentes, amigos, a família espiritual, muito maior que a daqui, todos vibrando, felizes com a sua chegada... É nessa hora que você vai entender direitinho o que Jesus quis dizer com "granjeai amizades".

Me vem à mente a sua trajetória, José Carlos Cannizza, desde os tempos de república em Brasília. Éramos cinco rapazes, crus ainda, mesclando nossas incertezas com nossas aspirações, construindo nossa independência, vivendo a experiência da falta da família.

Na nossa juventude, já prevíamos que você levaria alegria e acolhimento a muita gente.  Por isso nós o chamávamos de "mãe", lembra?  Girávamos em torno dos 20 anos de idade, todos na UnB, vida simples, de dificuldades, morando mal, dormindo em beliches e sofás, tendo por cozinha um corredor.  Ficamos aqui lembrando da geladeira que tinha o nome de uma antiga namorada sua que era muito fria... Também da sua vespa, único meio de transporte que tínhamos nas emergências, além de ônibus e carona.

Muita gente, à medida que o tempo passa, vai ficando mais inflexível, mais ranzinza, principalmente quando os problemas se agravam. Temos notícias de que, longe de nós, você enfrentou todas as intempéries com galhardia. As lembranças da programação divina para você, só posso concluir, estavam nítidas na sua mente e no seu coração. E você aproveitou integralmente as dificuldades, encarando-as como oportunidade de crescimento e resgate. Sabia bem a diferença entre conformação e resignação. Esta última é proativa; conformação é passiva. No fundo sabia que Alguém estava no leme, e que esse Alguém sempre está certo.

Lembrando ainda do padre, espero que você não ressuscite. Isso  — você sabe, engenheiro que é — contraria as leis da Física. E você está cansado de saber que ninguém morre.

Em breve estaremos juntos, relembrando os momentos bons passados aqui neste planetinha.  Muito possivelmente você vai encontrar a dona Thirsa também. A meia de seda que você tomava com ela quando ia entregar minhas cartas em Rio Preto, talvez ela não ofereça, mas vai lhe oferecer outras coisas, já que gostava muito de você também.

Que você se recupere logo de todas as mazelas físicas. E que Deus lhe dê pouco repouso e muito trabalho, já que Ele tem em você um colaborador de imenso potencial.

Vá em frente! Receba o nosso abraço, meu e da Elise. E parabéns! Não é todo mundo que deixa saudades assim.

Aristides Coelho Neto, 6 jun. 2018

"As dificuldades, como as montanhas, aplainam-se quando avançamos por elas.” — Émile Zola (1840-1902)

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