FALANDO DE DOUTRINA ESPÍRITA E MORAL CRISTÃ

QUANTO PESA A BÍBLIA

Se sabemos que Deus é Pai Amoroso, ao nos debruçarmos sobre o Velho Testamento, façamo-lo com extremo cuidado.

Em nossas modestas palestras, a plateia sorri quando lembramos Manuel, o simplório doutrinador que substituiria José Xavier na tarefa de conversar com os espíritos sofredores, em tempos que lá se vão, na reunião mediúnica do Centro Espírita Luiz Gonzaga em Pedro Leopoldo. Orientado a aplicar com veemência o Evangelho quando os espíritos perseguidores se apossassem do aparelho mediúnico de Chico Xavier, Manuel cumpriu a orientação à risca. Mas a seu modo. A velha Bíblia que trazia sempre consigo foi “aplicada” na cabeça do nosso querido médium (1). Resultado: interrupção imediata da reunião e um torcicolo que tirou Chico de cena por quase uma semana.

Quando cessa o momento de descontração dos ouvintes, é o momento de dizer algo sobre a Bíblia, obra densa, pesada — de todas a mais lida —, que levou aproximadamente 1.350 anos para ser escrita. A Bíblia só foi finalizada lá pelo ano 100 d.C., com o texto do apóstolo João, também evangelista, já bem velhinho.  A Bíblia é composta do Velho Testamento (antes do Cristo) e do Novo Testamento (após o Cristo). Sobre ela sempre surgem dúvidas, principalmente vindas dos espíritas, se seria ou não a “palavra de Deus”.

Quem já leu Contos desta e doutra vida certamente se lembra da história de Macário Fagundes (2). Recém-desencarnado, ele chegava à pátria espiritual também com uma Bíblia debaixo do braço. O temor à Bíblia inspirara toda a sua existência — era indiferente Jonas ter sido engolido pela baleia ou a baleia ter sido engolida por Jonas, sinal claro de fé não raciocinada. Para ele, sempre e em tudo, a Bíblia era a palavra de Deus. Estudara o livro sagrado em seus mínimos detalhes, promovendo estatísticas, contando versículos, palavras e até as letras.  Diga-se de passagem, isso muito antes de dispormos dos recursos de contagem de caracteres (3) que Bill Gates nos proporcionou.  Macário estudou, conheceu, teve fé.  Esqueceu-se, porém, de praticar, de vivenciar o que aprendera. Esqueceu-se das obras. E, é claro, só lhe restou retornar à Terra para fazer o bem que só conhecera teoricamente.  Palestrantes, somos muitas vezes como Macário. Vivemos aconselhando. E muitas vezes não fazemos o bem que ensinamos — dificuldades à vista na verdadeira pátria...

Pode-se concluir, entretanto, que Macário, ao seguir ao pé da letra tudo o que está no Velho Testamento, enveredaria por caminhos sombrios. Desavisado, ao utilizar como parâmetro cinquenta por cento dos ímpetos de justiça do Deus raivoso e irado, poderia meter-se em algumas enrascadas, quem sabe ser preso e condenado pela justiça dos homens. Ou ser internado em hospital psiquiátrico, dizem alguns mais exaltados.

É Richard Simonetti que vem demonstrar sua indignação quanto ao entendimento equivocado de muita gente que acha que a Bíblia é a palavra de Deus, quanto às “manifestações divinas” contidas no Velho Testamento, que nos dizem de penas que ultrapassam a natureza do crime (4), como se cometêssemos o delito de atirar uma rolha em uma pessoa e fôssemos punidos com uma tijolada. Deparamos com a pena de mãos cortadas por ínfimo delito em Deuteronômio (25:11-12). E vemos guris trucidados porque Deus teria ouvido a maldição do profeta Eliseu, que ficou muito chateado por ter sido chamado de calvo (II Reis, 2:23-24). Deus era muito bravo!

Há um texto que circula pela internet em que um ouvinte de Laura Schlessinger (5), por não conformar-se com um texto bíblico sobre homossexualidade, ironiza o modelo do Velho Testamento, tido pela locutora como “palavra de Deus eterna e imutável”. Citando o Êxodo, indaga quanto ao preço que sua filha, se vendida como escrava, poderia alcançar no mercado. Citando Levítico, manifesta a vontade de possuir um escravo canadense, já que mais comum era servo mexicano. Citando Êxodo, pede orientação quanto a uma alternativa para a obrigação aborrecida de ter de eliminar uma pessoa que trabalha aos sábados. Reportando-se ainda a Levítico, levanta a questão da discriminação quanto a pessoas com defeito na vista (6), proibidas de se aproximarem do altar de Deus. E por aí vai.

Hoje entendemos o porquê da proibição das manifestações mediúnicas por Moisés. Mas imaginem os leitores o quanto não foi útil à Inquisição o que contém Levítico (20:27): “O homem ou mulher que sejam necromantes (7) ou sejam feiticeiros serão mortos; serão apedrejados; o seu sangue cairá sobre eles”. Útil também aos detratores do Espiritismo, até hoje confundido por muitos com bruxaria. Quanto a Kardec, que baseou toda a Codificação Espírita na consulta aos espíritos, certamente seria barrado em sua missão por Macário Fagundes (lá do começo) e pela locutora Schlessinger.

Difícil mesmo, para Simonetti, é deparar com Deus arrependendo-se de ter feito o homem (Gênesis, 6:6-7).  Após ponderar que tantas incoerências não podem ser atribuídas a um Deus que age ao sabor do seu estado de ânimo, sem saber bem o que quer, é o mesmo Simonetti que nos diz que não devemos menosprezar a Bíblia. E é nessa linha que queremos conduzir o nosso arrazoado — reafirmar que para os espíritas a Bíblia não é a palavra de Deus e dizer da forma que deve ser analisada, sem a pretensão de apresentar novidades, já que muitos autores já trataram do assunto.

As chamadas Sagradas Escrituras foram escritas por homens, mas mantêm sempre uma tessitura divina.  Nelas encontramos flashes de espiritualidade (Simonetti, op. cit.) a todo instante, em meio a narrativas históricas, contos, costumes, ensinamentos, poemas, orações, muitas delas belíssimas, e também profecias sobre a vinda do Messias. Cada trecho há de ser considerado de acordo com uma época, com um nível evolutivo específico, com a necessidade de sempre do homem quanto a mitos. Quando nos deparamos com o Salmo de Davi (Salmos, 143:12) solicitando-se a Deus dar cabo dos inimigos e destruir todos os que nos atribulam, há de se entender que a humanidade de então não estava preparada para perdoar inimigos (aliás, hoje estaríamos?).  Isso viria a seu tempo, com o advento de Jesus. À época de Moisés, a humanidade clamava por justiça. Já à época de Jesus, a humanidade clamava por amor.

Há de se entender também que Deus — voz tonitruante que se ouve nos filmes, estilo Cid Moreira — nunca falou aos homens diretamente. Falou por meio de seus mensageiros espirituais a médiuns que interpretaram a seu modo o que ouviram.  Após a filtragem mediúnica, traduzindo portanto de acordo com o seu repertório intelectual e cultural, na sua fragilidade de homens, as mensagens foram passadas oralmente de pessoa a pessoa, em época em que não havia a escrita, ou em que, posteriormente, escrever era privilégio de poucos.

E vieram os textos impregnados de interpretações pessoais, e vieram os tradutores, e vieram os manipuladores, em função de exigências políticas ou do sectarismo religioso.  Temos então textos inspirados por Deus, mas escritos pelo homem. Mensagem divina que, retransmitida, recebeu embalagem humana (8). Relativamente simples!

Há de se levar em conta ainda que a linguagem — hebraico ou aramaico  (9) — em que foi escrita a maior parte da Bíblia não era sofisticada, racional. Não continha abstrações e conceitos filosóficos. Em linguagem simples, concreta, os textos eram recheados de hipérboles, expressões que exageram a verdade, aumentando-a ou diminuindo-a. E há muitos hebraísmos (10) sem tradução possível em outras línguas. No entender de Herculano Pires (11), cada conjunto de livros que compõe o Velho Testamento corresponde a uma fase do longo e doloroso processo da ascensão dos homens para a divindade. E é Emmanuel (op. cit.) que complementa: "Velho Testamento, o esforço desesperado dos homens clamando aos céus por socorro; Novo Testamento, a resposta divina aos homens".

Diante destas considerações tão rápidas sobre a Bíblia, permito-me sugerir uma escala de prioridades para o leitor espírita. Em primeiro lugar, fiquemos com o Evangelho segundo o Espiritismo. A explicação espírita do Novo Testamento é a chave para se compreender a mensagem do Cristo na sua plenitude. 

Em segundo lugar, após estarmos totalmente familiarizados com o Novo Testamento à luz da Doutrina Espírita, conheçamos o Novo Testamento por inteiro, valendo-nos das muitas obras-suporte de Caibar Schutel (12), de Emmanuel (13) e muitos outros — elas nos ajudam a interpretar os textos.  Em terceiro lugar, se sentirmos necessidade, busquemos conhecer o Velho Testamento com olhos nos preceitos de Paulo: “tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” – Paulo (I Coríntios, 6:12). (14)

Se nós espíritas sabemos muito bem que Jesus é o Caminho, e que Deus é Pai Amoroso e infinitamente Misericordioso, voltemo-nos para o Velho Testamento com extremo cuidado. Apreciar com moderação. E com discernimento.

Aristides Coelho Neto, 8 jul. 2006

____________________________

(1) A surra de Bíblia, em Lindos casos de Chico Xavier, de Ramiro Gama (LAKE, 12ª ed., p. 49).
(2) Contos desta e doutra vida, de Irmão X, psicografia de Chico Xavier (FEB, 1ª ed., p. 32).
(3) Programa Word, da Microsoft (ferramentas, contar palavras).
(4) Um legislador da pesada, em Para rir e refletir, de Richard Simonetti (CEAC, 2002, p. 57).
(5) Laura Schlessinger, conhecida locutora de rádio nos EUA, tem um programa interativo de respostas e conselhos aos ouvintes. Certa vez,  perguntada sobre homossexualidade, a locutora disse tratar-se de uma abominação, de acordo com a Bíblia (Levítico, 18:22).
(6) Diante da falta de detalhes, este articulista se arrisca a indicar alguns defeitos visuais: miopia, astigmatismo, hipermetropia, presbiopia (!).
(7) Necromante: pessoa que invoca os mortos, que pratica a necromancia (adivinhação pela invocação dos espíritos, magia, bruxaria).       
(8) O Gênesis, da série A Bíblia na linguagem espírita – vol. 1, pelo espírito Cecília, psicografia de Irene P. Machado (Recanto). 
(9) Os livros da Sabedoria, II Macabeus e trechos dos livros de Daniel e Ester foram escritos em grego.
(10) Gostar de uma pessoa mais do que de outra = “amar uma pessoa e odiar a outra” (chama-se a atenção do interlocutor pelo contraste). Em Isaías: misericórdia de Deus está bem perto = “Deus não tem mão curta”. No hebraico, despido de artifícios linguísticos, tio, sobrinho era irmão.
(11) Os espíritas e a Bíblia, em O homem novo, de J. Herculano Pires (Correio Fraterno, 1983, p. 61).
(12) Vida e atos dos apóstolos; Parábolas e ensinos de Jesus (Clarim).
(13) Fonte viva; Vinha de luz; Caminho, verdade e vida; Pão nosso (FEB).
(14) Ou seja: não me deixo influenciar e nem me escravizar por nada. Só assimilo o que eu quero, selecionando o que me é útil, pois sou dono da minha casa mental. Conselhos e sugestões são recebidos a toda hora. Cabe-me julgar o que é melhor para mim.

 

Comentários (3)

Voltar